Leonardo Woolf.
os pontos já haviam sido tirados mas as cicatrizes parecia não gostar da idéia de se cicatrizarem. o balão de hélio vermelho onde estava escrito ‘sare logo’ que ele mesmo havia amarrado à cabeceira da sua cama do hospital agora já estava começando a murchar. ele olhou para frente, onde encontrou uma mesa com um pote. tentou se levantar, sentiu um pouco de dor, mas mesmo assim, seguiu em frente.
ao chegar perto, percebeu que estava ali, no pote, um coração imerso em água. olhou para os lados. não entendia nada até que viu, bem perto de onde estava, uma folha de papel virada ao avesso. a segurou bem perto dos olhos, mas a sua visão de 63 anos não era mais a mesma que aos 23. voltou para perto da cama, alcançou a cabeceira e pegou os seus óculos.
as letras não eram assim tão grandes, mas as conseguiu ler. lá diziam: “enfermeira,esse coração pertencia ao Sr. Leonardo Woolf. por favor, entregar até às 9:00 na sala 32 para ser descartado.”. Leonardo Woolf então se sentiu como se lhe tivesse tirado os pés do chão. como se a via láctea por completo estourasse em sua cabeça. Estava completamente sem ação até que, mais por reflexo, fitou o relógio. marcava 8:56.
pensou que logo sentiriam falta do seu coração e não conseguiu pensar mais que uma vez e já estava se vendo correndo, segurando o pote com o seu coração, pelos corredores de hospital e também para longe dele.
enquanto corria freneticamente pelas ruas, ainda de pijama, várias imagens passaram por sua cabeça. enfim, lembrou-se de seu médico o aconselhando a não fazer a operação, que estava ele colocando tudo seu em risco. lembrou exatamente do médico dizendo “ sem seu coração, sua respiração será apenas um ritmo qualquer”. em seguida, lembrou da carta de despedida que a sua mulher havia lhe deixado horas antes dela cair no lago (ela que sabia nadar tão bem…). lembrou-se de anos mais cedo, quando depois de uma grande discussão com a sua única filha a encontrou morta dentre os escombros de um carro após um sério acidente na rodovia.por fim, lembrou-se do fogo em um quarto de criança, aquele que matou seus pais quando ele ainda era pequeno.mas diferente de antes, essas lembranças não lhe causava dor alguma. ele apenas lembrava-se delas e não sentia nada. nada acontecia.
ele achou que assim estava melhor, por fim.
alguns dias se passaram. já estava em sua casa, e os dias cada vez se tornavam mais iguais.havia perdido a vontade, que antes era superior a si mesmo, de escrever. parecia que nem a comida tinha mais o gosto que ele já estava acostumado. nada lhe dava mais prazer algum. às vezes, olhava-se pelo espelho. encontrava apenas um velho, com as faces descaídas, rugas que agora não significavam mais nada para ele. ele havia guardado todos os porta-retratos da casa, mas havia deixado um que continha a foto de sua mulher e sua filha próximo ao espelho. ele as encarava e, para ele, apesar dele saber quem eram, lhe pareciam apenas estranhas conhecidas.
Leonardo Woolf, numa quinta-feira à noite se dirigiu à um show de Blues, umas das poucas coisas que ainda gostava. Naquele dia, apresentava-se Olga. Olga, sem sobrenome nem antecedentes. a baixo do seu nome no cartaz da apresentação estava escrito “que canta tão triste que te faz chorar”.
As músicas passavam-se, e por mais que Leonardo Woolf apontasse a primeira vontade de sentir alguma coisa desde que lhe foi tirado o coração nada vinha ao seu alcance. Sentiu um gosto amargo na boca. Só.
ao final, Olga se despediu e ele viu algum esboço de lágrimas em seus olhos. talvez tenha sido alguma ilusão devido ao jogo de luz usado no bar. ele, que estava um pouco conturbado, resolveu refazer o caminho para casa à pé.
no seu caminho, viu pessoas rindo e ratos que corriam entre a escuridão das árvores. chegou em casa, sentiu as mãos um pouco mais frias que o normal.ao chegar no quarto, fitou mais uma vez o coração que ele recusava a enxergar escondido próximo a prateleira mais alta. viu que chovia muito do lado de fora…
agarrou o pote com as mãos ainda bem frias e agora trêmulas.o levou até a cozinha.
Leonardo Woolf pegou um prato, começava a se sentir um pouco desesperado agora. arrumou a mesa como sempre. um prato e talheres. o guardanapo na esquerda, como gostava.abriu o pote, não reconheceu aquele cheiro, pegou o coração com as mãos e o colocou em seu prato. lembrou-se do retrato de sua mulher e filha e trouxe a mesa junto com a ultima tela que ele próprio havia pintado dias antes da operação.sentou-se novamente. olhou em sua volta. pegou o seu garfo, a faca. olhou-as de perto. respirou fundo.
cortou um pedaço do seu coração e o levou a boca. sentiu mais uma vez um gosto amargo. quis parar, sentiu-se repugnante. não parou. levou à boca um segundo, terceiro, quarto pedaço. acabou. era aquilo.
Leonardo Woolf correu até seu espelho.quis ver sua imagem. nada. nada. tudo tinha se resumido a nada. ele não via mais sua imagem refletida. deitou-se encolhido no chão. pensou, por fim “talvez eu seja o herói desta história. Ele é o único q não precisa ser salvo.”…
velha, Bárbara segurava o retrato da minha esposa morta. fomos ao restaurante e pedi o salmão mais caro. minhas filhas me enxergaram que do que eu sou. eu disse “Bárbara, você anda tão parecida com sua mãe”. disse que teria mais algum dinheiro que andava guardando para mais algumas sessões da Quimo no cofre atrás do quadro da Anastasia Hohriakiva. infelizmente não estávamos mais na Rússia…
ia escrever um texto meu, aquele que pretendia colocar no concurso e que perdi a inscrição, mas hoje tive mais uma daquelas aulas maravilhosas da minha professora de geopolítica, Luciana Worms. não vou ficar puxando saco dela por aqui (apesar dela merecer, muito), vou direto ao assunto.
az uma semana que eu ando me obrigado a ir até a secretaria me inscrever no ‘concurso’ de literatura alguma coisa da minha escola que o meu professor de Português comentou na sala. é muito fácil chegar na secretaria e pedir o regulamento. fácil, fácil. mais fácil que enfrentar a fila do lanche na escola. a verdade, é que não sei mesmo por que ainda não fui. não sei se é medo, não sei se todo esforço seria em vão. só sei que quero participar, mesmo que seja irrelevante.
um dia resolvi sair de casa para dar um passeio. passei pela parada de ônibus e um gato cruzou meu caminho. pelo que me lembro, ele era preto. sim… era preto e seus olhos brilhavam até mesmo quando ainda estávamos no fim da tarde. ele me encarou, eu sei que ele me encarou. não liguei… na volta, passei em frente ao mercado. entrei, fui direto a sessão de conservas. não sabia bem o porquê, só sabia que ia ser divertido se eu ficasse por lá algum tempo. apesar de ter o mesmo clima que todo o mercado, lá era mais frio, e isso me atraiu. passei os olhos pelas prateleiras e me senti melhor. vi uma lata de picles em conserva. olhei pra ele e ele olhou pra mim. nao sei, mas por algum momento, nos conectamos. passei pela porta e um homem grande e com cara de quem brigou com a mulher na hora do almoço disse: “ei, você precisa pagar por isso.”. meu coração parou. fechei os olhos e não fui eu quem respondi, mas sim o picles “ queria ver o campo abaixo de mim. queria poder ouvir o galo cantar. mas vivo no centro e as trevas chegam junto com o novo carregamento da semana. queria ver o campo abaixo de mim. sentir a grama nascendo abaixo da minha carne que parece morrer por aqui…”. aquele homem grande tirou de seu chapéu uma chave e a me entregou e disse “preciso do seu dinheiro, mas não me importaria se levasse meu carro” engatei a chave no contado e disse ao meu grande amigo “a liberdade está aqui.” ele então tirou suas mão do seu pote e pegou no volante e disse-me: “amigo bobo, todos somos prisioneiros e vivemos a nossa vida apenas para tentar escapá-la. mas agora não há barreiras nem obstáculos. a vida começa de novo e de novo, mesmo todos gritando e a querendo de volta. atire-se de seu próprio barco e afogue-se. talvez você se sinta livre e daí tente sempre manter-se livre a qualquer custo, mas esta já não é outra prisão? não, nunca mais vou esperar. não me ligue, não me escreva. posso estar apaixonado por sua filha no futuro então, por favor… fuja do centro. eu não estarei mais aqui…” fechei a porta do carro. saí andando enquanto via a fumaça daquele carro desaparecendo levemente no horizonte.